Ricardo
Gomes Lima
Claudia Marcia
Ferreira
Quando,
em 22 de junho
de 1947, foi inaugurada
na Biblioteca
Castro Alves do
Instituto Nacional
do Livro, no Rio
de Janeiro, a
“Exposição
de Cerâmica
Popular Pernambucana”,
tornavam-se públicas
a vida e a obra
de um dos maiores
artistas brasileiros:
o Mestre Vitalino
dos bonecos de
Caruaru.
É
provável
que, naquela ocasião,
o arte educador
e também
artista plástico
Augusto Rodrigues,
idealizador do
evento, não
tivesse vislumbrado
toda a dimensão
de seu gesto.
Mais do que se
apresentar ao
mundo a obra de
Vitalino Pereira
dos Santos (1909
- 1963), escrevia-se
um novo capítulo
da história
da arte no país.
Introduziam-se,
no domínio
da arte, até
então centrada
em sua quase totalidade
na produção
de caráter
marcadamente erudito,
objetos dotados
de uma estética
particular, posto
que originários
de outro universo,
que se convencionou
denominar arte
popular.
Segundo
Lélia Coelho
Frota, essa exposição
“(...)
que representa
o início
da descoberta
das artes populares
pelas elites intelectuais,
é conseqüência
de um processo
histórico-cultural
ligado à
filosofia do Movimento
Modernista de
22 e do Movimento
Regionalista do
Recife, iniciado
naquela cidade
em 1923. Tratava-se
de recuperar,
para a norma erudita,
aqueles aspectos
da realidade brasileira
que constituem
a cultura popular,
e que até
hoje representam
para a elaboração
do nativismo um
repertório
de extraordinário
vigor e riqueza.”
(Frota, 1986:11)
De
1947 aos dias
atuais, outros
capítulos
dessa história
foram escritos.
Constituíram-se
coleções
públicas
e privadas, realizaram-se
exposições,
foram editados
livros, filmes
e vídeos
voltados à
análise
e à divulgação
das expressões
de uma arte oriunda
de indivíduos
pertencentes às
camadas populares
ou resultante
da ação
de comunidades
organizadas em
torno da produção
de objetos da
cultura material.
Nesse
período,
observa-se também
a criação
de instituições
museológicas
no país,
cuja finalidade
precípua
inclui a coleta,
a guarda e a exposição
de objetos de
origem popular.
Tais instituições
surgem no contexto
de implantação
de mecanismos
de proteção
ao folclore nacional,
a partir da iniciativa
de uma rede organizada
de intelectuais,
convencionalmente
nomeada Movimento
Folclórico
Brasileiro (cf.
Vilhena, 1997).
Com
intensa mobilização,
esse Movimento
instituiu a Comissão
Nacional de Folclore
no âmbito
do Ministério
das Relações
Exteriores, comissões
estaduais e a
Campanha de Defesa
do Folclore Brasileiro,
posteriormente
Instituto Nacional
do Folclore e
hoje Centro Nacional
de Folclore e
Cultura Popular,
órgão
da Funarte, Ministério
da Cultura.
Como
estratégia
de ação,
o Movimento organizou
sucessivos congressos
e semanas de folclore
com intuito de
reunir folcloristas
e pesquisadores
em torno de temas
comuns a esse
campo de conhecimento.
Já no primeiro
congresso, realizado
em 1951 no Rio
de Janeiro, clamava-se
por espaços
museológicos
voltados para
a cultura popular.
Naquele encontro,
foi elaborada
a “Carta do Folclore
Brasileiro”, documento
que se propunha
guia das ações
a serem implementadas
pelos folcloristas
e no qual, a respeito
da criação
de museus de folclore,
se lê:
1.
É inadiável
a necessidade
de preservar os
produtos da inventiva
popular, tanto
os de caráter
lúdico
e religioso como
os de caráter
ergológico.
A guarda desses
objetos deve ficar
a cargo de instituições
apropriadas, e
sob a direção
de órgãos
ligados à
pesquisa e ao
estudo do folclore,
devido tanto ao
caráter
coletivo dessa
tarefa como ao
longo tempo indispensável
à coleta
e classificação
dos dados para
lhes dar interesse
didático.
2.
Recomenda, pois,
o Congresso a
criação,
no Distrito Federal,
do Museu Folclórico
Nacional, com
uma das suas divisões
ou um museu subsidiário
dedicado ao folclore
e às artes
populares da Capital
da República
e de museus folclóricos
por parte das
Comissões
Regionais, nas
Capitais e nos
Municípios
em que a sua criação
se revelar exeqüível,
proveitosa e representativa
(...).
3.
Para a efetivação
destas medidas,
a Comissão
Nacional de Folclore
pedirá
aos governos estaduais
que auxiliem,
na medida do possível,
a criação
e organização
dos Museus Folclóricos
locais, seja assegurando-lhes
facilidades de
instalação,
seja emprestando
técnicos
de museu, seja
subvencionando
no todo ou em
parte as suas
atividades (...)
e as Comissões
Estaduais de Folclore
se entenderão
com os poderes
públicos
locais no sentido
de obter deles
a cessão,
para a formação
dos museus estaduais,
de objetos de
uso e criação
popular porventura
existentes em
repartições
não especializadas,
como as chefaturas
e delegacias de
polícia
(...)
Como
resultado da mobilização
empreendida pelos
folcloristas,
foram feitas várias
tentativas, algumas
mais bem-sucedidas
do que outras,
visando à
criação
de museus em diversos
estados, destacando-se
Espírito
Santo e Paraná
em 1953, São
Paulo em 1954,
Distrito Federal
em 1956 e Minas
Gerais em 1965.
Embora pudessem
comportar objetos
coletados nos
mais diferentes
pontos do país,
esses organismos
tinham seus acervos
voltados primordialmente
para a cultura
material local.
Permanecia, portanto,
o país
sem uma instituição
museológica
dedicada ao folclore
nacional e que
abrigasse a arte
oriunda do povo
brasileiro em
sua totalidade.
A
criação
desse órgão
no âmbito
federal era reclamada
por intelectuais
da época,
como o antropólogo
Manuel Diégues
Júnior
que, em 1954,
constatava “quanto
nos faz falta
um Museu de Arte
Popular, de Folclore,
de Tradições
Populares, de
Técnicas
Populares, de
Etnografia, ou
que outro nome
tenha, mas que
seja um museu
representativo
de nossa cultura
popular.” (Diégues
Júnior,
1954)
Esse
quadro só
foi revertido
em 1968, com a
fundação,
no Rio de Janeiro,
do Museu de Folclore
que, em 1976,
passou a ser denominar
Museu de Folclore
Edison Carneiro
- MFEC. Criado
pela então
Campanha de Defesa
do Folclore Brasileiro,
em convênio
com o Museu Histórico
Nacional, o Museu
de Folclore foi
inicialmente instalado
numa das dependências
do Palácio
do Catete e, no
decorrer do tempo,
ampliou gradativamente
seus espaços,
com a incorporação
do prédio
179 da Rua do
Catete, em 1975,
da antiga garagem
do Palácio,
em 1980, e do
prédio
181 da mesma rua,
em 1983.
De
1968 até
os dias atuais,
o MFEC fez crescer
seu acervo, hoje
composto de 14
mil objetos, em
sua maioria coletados
a partir de pesquisa
de campo, cuja
tônica tem
sido ditada, sobretudo
a partir de 1982,
pela antropologia
social. Renovando
critérios
teóricos
e museológicos,
o Museu volta-se
para estudos etnográficos
que contextualizam
os objetos reunidos,
respaldando-se
em ampla documentação
de campo e minucioso
registro museológico
(cf. Lima, 1985).
Na
constituição
de seu acervo,
o MFEC entende
os produtos da
cultura em seu
sentido antropológico
contemporâneo,
isto é,
não como
meros objetos
cuja função
se esgota na matéria
de que são
feitos, mas sim
como formas concretas
que, em sua materialidade,
comportam e expressam
sistemas de significação
que lhe são
permanentemente
atribuídos
e, portanto, constitutivos
de nossa humanidade.
São bens
culturais que
participam do
patrimônio
de toda a nação
e estão
disponíveis
ao público
sobretudo por
meio das mostras
permanente, temporária
e itinerantes
que o museu organiza.
Entre
as ações
institucionais,
a exposição
permanente é
um dos canais
de difusão
da arte popular
mais privilegiados
pelo museu. Reformadas
em 1994, suas
galerias ocupam
hoje uma área
de 1.600 m2. Para
projetá-las,
uma questão
logo se colocou:
como um museu
de folclore e
cultura popular,
de abrangência
nacional, constrói
um enredo, desenvolve
um fio pelo qual
seja possível
abordar o homem
brasileiro em
suas múltiplas
faces? Como dar
conta dos repertórios,
dos variados temas,
das questões
tratadas pelo
museu?
A
partir do entendimento
de que folclore
é um campo,
permanentemente
renovado, de significados
atribuídos
às “coisas”
sociais, e da
discussão
sobre a criação
desse universo
no Brasil, deu-se
início
ao debate sobre
a maneira de abordar
questões
a ele referenciadas,
de forma ampla,
isto é,
com o maior número
possível
de especialistas.
Observações
advindas dos projetos
educativos, da
visitação
de público
e, sobretudo,
o estudo do Livro
de opinião
do visitante,
tornaram-se a
base para identificar
lacunas, suprir
carências,
“perceber ruídos”
que comprometiam
as mensagens implícitas
no circuito daquela
montagem da exposição
que, inaugurada
em 1983, permanecera
aberta a público
por 10 anos. Ela
serviu de laboratório
de estudo do qual
resultou um fio
que costura as
seguintes unidades
temáticas
constituintes
da atual exposição:
Apresentação
da mostra e introdução
da discussão
sobre a diversidade
da cultura brasileira,
resultante do
encontro e do
confronto de diferentes
etnias, não
apenas genéricos
colonizadores
portugueses, índios
e escravos africanos,
mas diferentes
e particulares
grupos culturais
que para aqui
vieram em épocas
distintas e por
razões
várias.
Módulo
Vida, que reúne
representações
sobre o ciclo
de vida dos indivíduos
e as marcas culturais
que a ele se impõem.
São objetos
que retratam cenas
ritualizadas de
nascimento, batizado,
namoro, casamento,
enterro; o universo
infantil da escola,
dos brinquedos
e das brincadeiras
tradicionais,
masculinos e femininos;
o trabalho da
casa e da rua,
desempenhado por
homens e mulheres,
e os momentos
de lazer e ócio,
tais como a batucada
num botequim e
a ciranda dançada
em praias nordestinas;
representações
das vidas que,
ao longo do território
nacional, são
encontradas em
constante processo
de transformação
estimulado pelos
meios de comunicação
de massa, mas
preservadas na
memória,
na transmissão
oral, no resgate
das marcas culturais
e registradas
por arte e engenho
de mestres do
barro como os
do Vale do Jequitinhonha,
em Minas Gerais,
do Vale do Paraíba
paulista ou do
Alto do Moura,
em Caruaru/PE
, do tecido –
que confeccionam,
por exemplo, bonecas
de pano, como
os da comunidade
do Chapéu
Mangueira e da
Cooperativa Abayomi,
ambas no Rio de
Janeiro ou da
madeira como o
mineiro Antônio
de Oliveira, que
resume o módulo
com a peça
Escada da Vida,
entre outros materiais.
O
módulo
Técnica
apresenta, em
ambientações,
diversas tecnologias
tradicionais de
produção
de alimentos –
por exemplo (uma
“casa de farinha”
ou “retiro”, vinda
do Pará
e uma adega de
produção
familiar de vinho,
de tradição
italiana da região
de Caxias do Sul/RS),
além de
pólos produtores
de cerâmica
(Maragogipinho/BA
e Apiaí/SP),
o universo das
tecelãs
goianas, comunidades
pesqueiras e seus
implementos de
linha e trançados,
finalizando numa
ambientação
que remete o público
para mercados
e feiras populares,
espaços
privilegiados
do escoamento
da produção
artesanal, e que
também
abrigam outros
prestadores de
serviços
e artistas como
lambe-lambes,
sábios
praticantes da
medicina popular,
cantadores e cordelistas
e mamulengueiros
com seus títeres.
No
exercício
de sua fé,
não é
raro o brasileiro
aglutinar santos
católicos,
orixás
do candomblé
e entidades da
umbanda. O estabelecimento
de laços
entre os homens
e suas divindades,
meta da religiosidade
popular, está
representado,
no módulo
Religião,
por ex-votos coletados
no Ceará,
ferros de assentamento
de orixás
recolhidos na
Bahia e por uma
procissão
ecumênica,
diante da imagem
de São
Jorge que tem
à frente
uma bandeira de
São Benedito.
Relevante marca
cultural, a música
que permeia os
vários
espaços
é aqui
representada por
atabaques rituais
com suas especificidades
afro-brasileiras.
Na
linguagem de danças,
cantos, fantasias
e comidas, o brasileiro
fala sobre a sociedade
em que vive, seus
valores e crenças.
Nas festas, e
por meio delas,
são permanentemente
construídas
maneiras de viver
e ver o mundo.
Enfatizando o
processo que culmina
no grande evento,
o módulo
Festas destaca
as rodas de candomblé
presentes na Bahia,
no Rio de Janeiro
e em tantas outras
partes deste país;
o maracatu a encantar
com seus caboclos
de lança
o carnaval pernambucano;
as escolas de
samba, os clóvis
e outros mascarados
de rua dos múltiplos
carnavais cariocas;
as folias-de-reis
e sua devoção
natalina, também
em terras do Rio
de Janeiro; a
cavalhada que
mistura muitas
cores ao vermelho
do Divino de Pirenópolis/GO,
as danças
do cururu mato-grossense
em honra de São
Gonçalo
e o boi este do
Maranhão,
que bumba neste
país de
Norte a Sul.
No
módulo
que encerra a
exposição,
nomeado Arte,
adentra-se o universo
daqueles indivíduos
provenientes de
extratos populares
que, na materialidade
dos objetos que
criam, expressam
sentimentos, visões
de mundo e vivências
particularíssimos,
posto que resultantes
de processo criativo
individual, ao
mesmo tempo em
que revelam experiências
coletivas praticadas
pelos grupos culturais
dos quais participam.
São esculturas
em barro ou madeira,
gravuras, pinturas,
coletadas em diversas
localidades, de
autoria de artistas
da magnitude de
Mestre Vitalino,
Nhô Caboclo,
Luzia Dantas,
GTO, Chico Tabibuia,
Galdino, Antonio
Poteiro, Waldomiro
de Deus, Maria
de Beni, Conceição
dos Bugres e outros
mais.
A
ação
institucional
deste museu, que
as galerias de
exposição
permanente espelham,
faz-se, assim,
pautada no universo
simbólico
de vasto segmento
da população
brasileira ligado
a formas tradicionais
de produzir, vivenciar
e transmitir cultura.
Nesse sentido,
o MFEC, reconhecendo
a pluralidade
cultural do país,
busca também
o reconhecimento
das culturas tradicionais
populares, entendendo-as
enquanto importante
fator de constituição
e fortalecimento
das múltiplas
identidades locais,
regionais e nacional,
base da cidadania
que hoje o país
tanto discute.
O
Museu está
ciente do lugar
que ocupa enquanto
instância
de consagração
da arte popular
junto aos diferentes
segmentos da sociedade
nacional, e busca
instigar no olhar,
predominantemente
estético,
do público,
a percepção
do espaço
ocupado pelo objeto
no seu contexto
original de produção
e fruição.
No
entanto, lidar
com a produção
plástica
de origem popular
no Brasil contemporâneo
é tarefa
bastante complexa.
As dificuldades
em definir parâmetros
que delimitem
esse universo
estão referidas
a diferentes fatores,
alguns internos
ao próprio
campo teórico
de conceituação
de termos como
arte e povo e
outros que dizem
respeito à
dinâmica
de transformação
social vivida
pelo país,
sociedade plural
em que convivem
os mais diferenciados
contextos e dos
quais emanam as
mais diversas
expressões
de arte (Lima,
1997).
Assim
como folclore
e cultura popular
são noções
surgidas a partir
do ideário
romântico
europeu do século
XIX (Burke,1989),
o conceito de
arte popular é
uma criação
social, historicamente
elaborada que
carrega em si
mesma inconsistências
teóricas
que diferentes
trabalhos têm
evidenciado com
propriedade (Neves,
1979; Soares,
1983).
Sem
pretender ampliar
em demasia considerações
acerca de sua
origem, é
necessário
salientar que
folclore, cultura
e arte populares
são expressões
há muito
cunhados para
designar visões
de mundo, práticas
e produtos sociais
considerados diferentes
daqueles próprios
dos grupos hegemônicos
da sociedade.
Foi
a partir da ênfase
na diferenciação
entre elite e
povo, vistos como
universos apartados
por fronteiras
rígidas
e claramente definidas,
que o conceito
de arte popular
se estabeleceu.
E é nesse
contexto que a
expressão
é entendida
como uma categoria
reversa, isto
é, aquela
que, para existir,
necessita de seu
anverso. Assim,
numa dada realidade
cultural, a condição
de existência
de uma arte denominada
popular decorre
da presença,
nessa mesma realidade,
de outro tipo
de arte, a que
alguns estudiosos
se referem como
sendo a ARTE,
erudita ou de
elite. Arnold
Hauser é
um dos estudiosos
que defende essa
abordagem, argumentando:
“Não
poderá
mesmo se falar,
de forma alguma
em ‘arte popular’
enquanto a diferenciação
das sociedades
rurais em classes
não se
estiver estabelecida;
e isto porque
a ‘arte popular’
só tem
sentido quando
contraposta à
‘arte dos grupos
ou classes dominantes’.
A arte de uma
coletividade que
não se
encontra ainda
dividida em camadas,
em ‘dirigentes
e dirigidos’,
não pode
ser considerada
como ‘arte popular’
pela simples razão
de que não
existe a seu lado
qualquer outra
espécie
de arte.” (Hauser,1972:38)
No
Brasil, a polarização
em torno das noções
de povo e elite
determina duas
visões
distintas: a que
entende a arte
popular como forma
de contracultura
em relação
à arte
erudita, uma forma
de resistência
à dominação
de classe, e aquela
para a qual o
popular nada mais
é do que
uma imitação
rústica
e deteriorada
dos modelos da
tradição
acadêmica,
uma cópia
empobrecida de
expressões
eruditas da arte
(cf. Soares, 1984).
Em ambos os casos
prevalece a noção
de arte popular
como “outro” espécime,
distinto dos cânones
da cultura dominante
e que, por extensão,
participa de outro
mundo, do passado,
mundo esse que
se define pela
oposição
à sociedade
moderna, vista
como o locus da
arte erudita,
considerada de
vanguarda.
Nesse
sentido, as expressões
da produção
popular brasileira,
quando inseridas
no campo que se
denomina folclore,
geralmente sob
o rótulo
de arte ou artesanato
populares, são
tidas como sobrevivência
de formas culturais
que um dia foram
atuantes mas já
não o são
mais. Sua existência
é entendida
como persistência,
como um conjunto
de objetos, práticas
e concepções
que, oriundos
do passado, se
conservam, como
resíduos,
comumente nas
áreas rurais
e mais pobres
do país,
tidas como conservadoras
e, portanto, menos
permeáveis
a mudanças.
Essa
perspectiva traz,
como conseqüência,
a mistificação
da noção
de popular, idealizada
enquanto cultura
“autêntica”,
“pura”, testemunho
de uma realidade
de outrora, mais
nobre, que caberia
a todo custo conservar
e defender de
influências
espúrias,
posto que lhe
cabe o papel ora
melancólico
de sobrevivência
condenada ao desaparecimento,
ora redentor de
representante
das “raízes”,
da identidade
e da nacionalidade.
“Desse
modo, assim como
a arte dos povos
primitivos, dos
loucos e das crianças,
enfim, formas
de expressão
estética
estranhas ao domínio
da arte erudita
ocidental, o objeto
de origem popular
é tido
como algo ingênuo,
pitoresco, curioso,
no mínimo
típico
e original (no
sentido de bizarro,
extravagante e
não de
inédito
ou único),
e contraposto
a uma arte auto-eleita
como normal, paradigmática
e não-popular.
Como suas similares,
por exclusão
e inferioridade,
a arte popular
é então
percebida, classificada
e julgada de acordo
com parâmetros
que lhe são
externos, forjados
por visão
preconceituosa
que confunde alteridade
com inferioridade”
(Neves, 1979).
A
oposição
elite x povo conduz
ainda a outros
desdobramentos,
como aquele que
atribui às
camadas dirigentes
o saber, opondose-lhes
o fazer, associado
aos estratos inferiores
da sociedade.
Ao dissociar a
obra intelectual
do trabalho manual,
condena-se a arte
popular ao domínio
da irracionalidade,
da inconsciência,
da espontaneidade
do mero fazer,
excluindo-se dela
todo esforço
consciente e intencional
de produção.
Isto tem implicado
afirmações
no mínimo
equivocadas como
a de imputar ao
artista o “dom”
de simplesmente
fazer, de deixar
as mãos
cumprirem espontaneamente
a missão
de transmitir
um sentimento
de mundo, modelando-o
a seu modo próprio.
O ato de criação
popular é,
então,
enaltecido como
fenômeno
por meio do qual
se revela uma
força ou
entidade transcendental,
externa ao homem,
possibilitando
a criação
de formas merecedoras
do estatuto de
arte, de difícil
explicação.
Tais
premissas trazem
subjacente o pressuposto
de que as populações
pobres estão
voltadas para
a sobrevivência
estrita, embotante,
semi-animal e
que, portanto,
suas criações,
já por
si motivo de admiração
e estranhamento
por existirem
em realidades
sociais tão
adversas à
revelação
do “belo”, são
produtos da instintividade
distantes da reflexão
e da sensibilidade.
A arte popular
seria, assim,
composta de objetos
que cercam o cotidiano
de indivíduos
voltados apenas
para a satisfação
das necessidades
práticas
e imediatas de
sobrevivência,
o que retira dos
agentes sociais
que lhe dão
concretude a capacidade
de abstração
e de sofisticação,
consideradas apanágios
da arte da elite.
Em
contraposição,
o artista erudito
é visto
como aquele que,
deliberadamente,
atua visando a
resultados determinados
por ele mesmo,
graças
à razão
consciente de
que é dotado.
Sua obra, quanto
mais expressar
conteúdos
e questões
definidas como
relevantes para
um contexto de
época,
mais atestará
a capacidade de
criação
individual do
autor e sua genialidade.
“Ao
contrário
do que propõem
tais afirmações,
com freqüência
destituídas
de suporte teórico
ou histórico,
pesquisas realizadas
junto a grupos
sociais específicos
têm demonstrado
que uma das características
da arte popular,
enquanto processo
de trabalho, reside
exatamente na
integração
das atividades
manual e intelectual,
na associação
visceral entre
a obra produzida
e seu autor.”
(Alvim, 1983).
Defender
a existência
de fronteiras
rígidas
que separem o
fazer do pensar,
o manual do intelectual,
o povo da elite
significa apostar
na existência
de dois mundos
radicalmente apartados,
onde florescem
artes de naturezas
distintas. Nessa
perspectiva, constata-se
uma noção
estática
de realidade que
não atenta
para o fluxo de
valores e modelos
de comportamento
as influências
recíprocas
que perpassam
os diferentes
estratos sociais
que compõem
a sociedade. Ao
contrário,
no Brasil, o que
verificamos na
arte popular contemporânea
é a presença
de um intenso
processo de criação,
em permanente
diálogo
com a situação
de vida de seus
autores.
Da
descoberta da
produção
plástica
de origem popular
pelas camadas
eruditas da sociedade,
em 1947, aos dias
de hoje, o país
tem passado por
inúmeras
transformações
que se refletem
na maneira pela
qual os indivíduos
se pensam e a
sociedade se organiza.
Diferenças
marcantes que,
até meados
deste século,
separavam as diversas
regiões
do país,
distanciavam as
zonas rurais e
urbanas, as metrópoles
e as pequenas
cidades de vilas,
tendem a ser minimizadas
sucessivamente
por uma série
de fatores como
a industrialização,
os movimentos
migratórios,
o crescimento
permanente dos
centros urbanos
e a disseminação
de um ethos que
lhes era próprio
pelos veículos
de comunicação
de massa, sobretudo
o rádio
e a televisão,
que hoje fazem
com que valores
sociais e culturais
sejam reinterpretados
e compartilhados
por um número
cada vez maior
de brasileiros.
Entre eles, encontram-se
os artistas populares,
que traduzem em
suas criações
a realidade histórica,
de forma consciente,
uma vez que a
vivenciam e sobre
ela agem, reagem
e refletem, pois
são indivíduos
portadores de
um saber tradicional
de grande significado
cultural, herdado
dos grupos sociais
dos quais se originam.
Para
descrever esse
universo, portanto,
o termo arte popular
não pode
ser utilizado
como expressão
de uma categoria
explicativa a
priori que, como
tal, aponta uma
realidade homogênea.
Ele abriga realidades
diversas e particulares
que é preciso
desvendar para
a compreensão
do real significado
das expressões
artísticas
e culturais que
aí residem.
Uma das abordagens
possíveis
é aquela
que, atentando
para as categorias
imanentes aos
próprios
sujeitos sociais,
busca entendê-los
a partir de seu
próprio
discurso, isto
é, com
base em suas visões
de mundo, a construção
de suas redes
de relações
sociais e no sentido
que atribuem a
suas vidas, ações
e representações.
É fundamental,
então,
considerar a forma
como os artistas
definem seu cotidiano,
se vêem
enquanto agentes
sociais e constroem,
por meio de categorias
próprias,
suas identidades.
Exemplificando,
é necessário
saber o que leva
o mestre titereteiro
Zé Lopes,
de Glória
do Goitá,
cidade da zona
da mata pernambucana,
a confeccionar
mamulengos com
madeira e tecido
e, com eles, encenar
um espetáculo
narrando uma história
que o tempo consagrou,
ou de sua própria
criação,
para uma platéia
reunida na feira
semanal, num largo
de igreja em dia
de festa que pode
ser a do padroeiro
de uma cidade
do interior do
país. Que
sentido tem essa
espécie
de ritual para
aqueles que são
atores e público?
Que público
e que história
estão ali?
Quando respondemos
a questões
como essas, damos
mais um passo
na direção
do significado
que tem a arte
popular para aqueles
que a produzem
e para aqueles
que a consomem
no cotidiano de
suas vidas no
Brasil de hoje.
Somente
com base nessa
perspectiva, poderão
ser entendidas
técnicas
como escultura,
gravura, pintura
e uma infinidade
de outras que
dão forma
ao universo inesgotável
da expressão
humana que se
processa nos mais
diferentes contextos
sociais deste
país de
dimensão
continental.